segunda-feira, 22 de junho de 2015

Epilepsia e Gravidez

Epilepsia & Gravidez

Alberto Costa e Carlos Guerreiro

Casar-se, formar uma família e ter filhos constitui-se em um dos mais importantes aspectos de uma vida normal. Infelizmente pacientes com epilepsia, especialmente mulheres, não contavam até recentemente com este direito básico. O receio de declínio cognitivo e alterações comportamentais, a presença de estigmas de doença psiquiátrica e possibilidade de ocorrência de malformações, bem como a associação da epilepsia com distúrbios da sexualidade condenavam a união com pacientes com epilepsia. Nos séculos 18 e 19, portadores de epilepsia eram freqüentemente institucionalizados e tratados para a redução de seus impulsos sexuais e até 1986 estavam proibidos legalmente de casarem-se. A realização de esterilização involuntária em mulheres epilépticas foi aceita legalmente no estado da Carolina do Sul até 1986. No Brasil não existem dados que façam menção a legislações deste tipo. Este tipo de restrição pode exercer influência, reduzindo o número de filhos gerados por essas pacientes. Mulheres com epilepsia apresentam menores taxas de casamento e fertilidade, traduzidos por menores números de filhos quando comparadas com mulheres não epilépticas. Melhores condições de tratamento e saúde, além de melhor esclarecimento da população e classe médica têm contribuído para redução na diferença entre esses grupos desde a década de 80.
Epilepsia é bastante comum em aproximadamente 1% da população afetando tanto homens quanto mulheres, sendo o distúrbio neurológico mais freqüente na prática obstétrica, ocorrendo em 0,3 a 0,6% das gestações. Em mulheres, o tratamento das crises deve levar em consideração alguns aspectos adicionais como uso de anticoncepcionais, gravidez e amamentação. O acompanhamento clínico dessas mulheres deve ter como objetivo a obtenção do controle total das crises, minimizando os efeitos adversos dos medicamentos e das crises sobre a mãe e feto. Essas gestações são classificadas como alto risco por apresentarem uma maior probabilidade de complicações e o acompanhamento de mulheres epilépticas que demonstram desejo de engravidar apresentam três questões práticas. (1o.) Quais são os efeitos da epilepsia sobre a gestação? (2o.) Da gestação sobre a epilepsia? e (3o.) As conseqüências da epilepsia e seu tratamento sobre o concepto?

Efeitos da epilepsia sobre a gestação
Sexualidade

Mulheres epilépticas apresentam menor número de filhos quando comparadas com não epilépticas. Razões sociais como preconceito, baixa auto-estima e redução na sexualidade parecem ser os fatores mais importantes para justificar esses achados. Diminuição na sexualidade é observada em 28 a 67% dos pacientes com epilepsia e parece ser mais importante em portadores de crises parciais na epilepsia do lobo temporal, mediados por possível interação das drogas antiepilépticas (DAE) sobre o eixo hipotálamo-hipófise reduzindo os níveis dos hormônios adenocorticotrófico, cortisol, gonadotrofinas e prolactina. Disfunções sexuais como vaginismo, dispareunia (dor à relação sexual) e lubrificação vaginal insuficiente são mais freqüentes em mulheres epilépticas, associadas à diminuição de androgênios gonadais. Observa-se também uma maior incidência de gestações não planejadas em mulheres epilépticas jovens, solteiras e com menor escolaridade. Uma possível explicação para estes dados pode ser mais fácil acesso, escolha e eficácia dos métodos anticoncepcionais em comparação com mulheres menos instruídas.

Anticoncepção

O uso de anticoncepcionais não está associado à piora nas crises epilépticas, contudo sua eficácia pode ser reduzida durante o tratamento da epilepsia. Drogas antiepilépticas interferem de maneira significativa sobre a eficácia dos contraceptivos, especialmente anticoncepcionais orais. A maioria das DAE é indutora do metabolismo hepático, acelerando a eliminação dos estrógenos em até 50% e reduzindo seus efeitos. Carbamazepina, fenobarbital, fenitoína, primidona, topiramato, felbamato e oxcarbazepina são potentes indutoras enzimáticas e diminuem consideravelmente a potência dos contraceptivos. Valproato, gabapentina, vigabatrina, lamotrigina, zonisamida e benzodiazepínicos por outro lado, não parecem exercer efeitos significativos. O índice de falhas dos anticoncepcionais nessa população é estimado em até 8,5%, comparado com 1% das mulheres da população geral. É recomendada a administração de formulações contendo pelo menos 50 mg de estrógeno, devendo-se evitar as apresentações tipo mini-dose (tabela I). Freqüentemente ocorrem sangramentos durante o meio do ciclo menstrual, sugerindo que a dose hormonal é insuficiente. Mesmo em mulheres sem este sinal, não é possível prever a falha na anticoncepção. Prescrição de drogas não indutoras enzimáticas ou a combinação de método anticoncepcional de barreira pode ser uma alternativa mais eficaz.

TABELA I - Recomendações para o uso de DAE na mulher em idade fértil
1Utilizar anticoncepcional com pelo menos 50 mg de estrógeno. Combinar método de barreira.
2
3Discutir com a paciente os riscos da gestação para a mãe e feto, preferencialmente antes da gestação.
4Uso rotineiro de 1 a 5 mg/dia VO de acido fólico, preferencialmente antes da gestação e 10 mg/dia VO de vitamina K.
5Tratamento preferencial sob monoterapia, em doses fracionadas para evitar picos de dose. Não alterar o regime de tratamento durante a gestação
6Não existe droga de escolha durante a gestação. Evitar politerapia reduz a possibilidade de malformações fetais.
7Amamentação deve ser encorajada, exceto em casos de sonolência excessiva do neonato ou sinais de irritabilidade, mais freqüentes com fenobarbital e benzodiazepínicos.
8Incentivar cooperação na família para propiciar um horário adequado de sono para a mãe.
Modificado de Lopes-Cendes et al, 2000.

Complicações maternas

Gestantes epilépticas estão sujeitas a maior probabilidade de complicações que não epilépticas (tabela II). Observa-se com maior freqüência sangramento vaginal em 15 a 25% e descolamento prematuro de placenta em gestantes epilépticas, justificadas por diminuição na contratilidade uterina e deficiência de vitamina K. Indução do parto é realizado em 4,3 vezes mais freqüente e cirurgias cesarianas em até 2 vezes comparadas com controles. Estudos mais recentes demonstram uma redução nestes números, traduzida por uma melhor assistência médica demonstrando que muitas vezes a excessiva preocupação do médico assistente e paciente, pode ser responsabilizada como a causa das intervenções mais agressivas.

TABELA II - Resumo dos riscos da gestação em mulheres epilépticas
RiscoComplicações
25-33%Aumento na freqüência de crises
2 a 3 vezesRisco de descolamento prematuro de placenta
15 - 25%Risco de sangramento vaginal
7%Risco de hemorragia neonatal sem reposição de vitamina K
10%Risco de dismorfismo facial
4- 6%Risco de malformações maiores
1 - 2%Risco de espinha bífida com valproato
0,5 - 1%Risco de espinha bífida com carbamazepina
Modificado de YERBY, 1992.

Efeitos da gestação sobre a epilepsia
Freqüência de crises epilépticas na gestação e puerpério

A maioria das gestantes epilépticas não apresenta modificação na freqüência de crises durante a gravidez e puerpério. Cerca de um quarto a um terço das gestantes experimenta uma piora no controle das crises. Identificar corretamente a gestante que pode apresentar piora no controle das crises, especialmente crises tipo tônico-clônica generalizada pode minimizar a ocorrência de complicações para a mãe e feto.

Durante a gestação ocorrem modificações hormonais como aumento de gonadotrofina coriônica, progesterona e estrógenos. Estrógenos e gonadotrofina apresentam atividade epileptogênica em estudos experimentais e clínicos ao passo que progesterona exerce uma leve ação antiepiléptica, especialmente em modelos animais. Estes dados podem contribuir para justificar o maior número de crises no primeiro ou terceiro trimestres gestacionais observados em gestantes com aumento na freqüência. Não está claro na literatura se existe um predomínio em algum trimestre gestacional. Realizamos um estudo prospectivo em 50 gestantes epilépticas de julho de 1991 a setembro de 1999, das quais 28% aumentaram a freqüência de crises e não conseguimos identificar predomínio em qualquer trimestre gestacional ou fator de risco para aumento na freqüência. Em mulheres que apresentam piora no controle de crises, a falta de aconselhamento pré-gestacional com orientações sobre a evolução da gestação, complicações, importância da adesão ao tratamento medicamentoso e suplementação vitamínica parece ser um dos mais importantes fatores de descontrole de crises. A má-adesão ao tratamento, com suspensão ou redução voluntária da dose, por receio de malformações fetais é o principal fator de piora na freqüência. Infelizmente nos defrontamos, em nossa experiência, com gestantes que reduziram ou suspenderam suas medicações encorajadas por seus médicos, denotando desconhecimento dos riscos que a suspensão abrupta das DAE em qualquer momento, inclusive na gestação pode estar associada a crises tipo tônico-clônicas ou estado de mal, com graves conseqüências para o feto e paciente. Após o parto e durante o puerpério, quando a mãe se defronta com as exigências da amamentação, pode ocorrer um aumento na freqüência de crises causada por supressão do sono, possivelmente associado ao estresse da maternidade.
Outros fatores como modificações na farmacocinética das DAE, aumento do clearance metabólico, ganho de peso e edema, consumo de ácido fólico e sexo do feto não estão associados conclusivamente com descontrole das crises na gestação. O consumo de álcool, por sua propriedade de indução do metabolismo hepático com redução dos níveis das DAE e contribuição para má-adesão, e privação do sono podem estar relacionados com aumento no número de crises.

Um controle adequado das crises epilépticas pode ser obtido fornecendo-se informações claras e objetivas para a mulher, idealmente antes da concepção. A importância da manutenção do uso correto das DAE e dos horários de sono pode contribuir para que a maioria das gestantes se mantenha bem controlada durante a gestação.

Conseqüências da epilepsia e tratamento sobre o concepto
Complicações fetais

Mulheres com epilepsia apresentam maiores taxas de abortos provocados, possivelmente motivados por receio de malformações, descontrole das crises ou medo de transmissão da epilepsia para o feto. Alguns estudos têm observado a ocorrência de baixo peso ao nascer e de menor perímetro cefálico em filhos de mães epilépticas, particularmente em usuárias de politerapia com fenobarbital e primidona, sofrendo influência de fatores étnicos, genéticos e ambientais. Filhos de mães epilépticas apresentam menores índices de vitalidade perinatal (APGAR) e maiores taxas de mortalidade perinatal que a população geral. Acompanhamento médico adequado, particularmente com o uso racional das DAE e reposição de folato, podem melhorar significativamente esses resultados.

Malformações fetais

O maior receio de mães epilépticas, quando grávidas, é a de gerar uma criança malformada. As malformações podem ser divididas em malformações menores e maiores como fenda palatina e lábio leporino, anomalias craniofaciais, defeitos cardíacos e do tubo neural como espinha bífida, ocorrendo em 3 a 10% das gestações. Estes defeitos não são específicos de uma determinada DAE, ocorrendo também em filhos de mães usuárias crônicas de álcool. Uma exceção é a associação de valproato e carbamazepina com defeitos do tubo neural como espinha bífida, estimado em 1 a 2%. É importante salientar que mesmo mulheres não epilépticas apresentam um risco geral para malformações fetais da ordem de 2 a 3% das gestações. O risco de malformações aumenta quando em politerapia em altas doses e não fracionadas, especialmente com fenobarbital e primidona. Malformações menores ou anomalias são observadas freqüentemente na população geral em cerca de 14%. O achado associado de várias anomalias em filhos de mães epilépticas é descrito em cerca de 4% sendo que estas anomalias costumam tornar-se imperceptíveis com o crescimento da criança.

Os mecanismos propostos para explicar a ocorrência de malformações são a formação de substâncias tóxicas relacionadas a níveis elevados e politerapia com várias DAE, formação de radicais livres e deficiência de folato. O uso de DAE está associado a grande redução dos níveis de ácido fólico. Mães com filhos portadores de malformações fetais apresentam níveis mais baixos de folato que mães com filhos normais. A reposição de folato recomendada é de 0,4 a 5 mg/dia e deve ser realizada rotineiramente, no mínimo 3 meses antes da concepção.
É importante salientar que apesar desses dados, o uso rotineiro pré-gestacional de folato previne a ocorrência de malformações e que mais de 90% das gestantes epilépticas geram filhos completamente saudáveis.

Amamentação

O uso de DAE costuma ser mantido durante a gestação e puerpério. Entretanto freqüentemente nos questionam sobre a segurança de amamentar o neonato. A decisão de amamentar ou não deve ser baseada em vários fatores como a vontade da mãe, número de DAE em uso, condição clínica do neonato e perfil farmacocinético das DAE com suas diferentes taxas de excreção no leite (tabela III). As concentrações das DAE variam no início e final da amamentação e de um seio para outro.

Na maioria dos casos a amamentação deve ser encorajada. Dar de mamar sentada no chão pode ser uma opção para mães com crises freqüentes. A ocorrência de sinais adversos como abalos, irritabilidade ou sonolência pode sugerir a interrupção da amamentação. Medicações sedativas como benzodiazepínicos e barbituratos são as mais relacionadas com alterações do sono e comportamento no lactente. Valproato, apesar de baixa taxa de excreção pode ser responsabilizado por reações idiossincráticas no neonato. Uma alternativa nestes casos é evitar a amamentação no período neonatal precoce quando os níveis das DAE são altos e a criança muito pequena.

TABELA III - Taxas de excreção das DAE no leite humano
Valproato5 - 10%
Fenitoína30%
Fenobarbital40%
Carbamazepina45%
Primidona60%
Etossuximida90%
Lamotrigina23 -50%

Considerações gerais

A condução do tratamento de mulheres epiléptica deve ser realizada com clareza, instruindo a paciente sobre os riscos de uma gestação, salientando que mais de 90 % tem filhos saudáveis. Deve-se também repor rotineiramente ácido fólico e administrar DAE em doses fracionadas, evitando-se as associações de medicações.

Referências Bibliográficas:
- Kaneko S. Epilepsy, pregnancy, and the child. Epilepsia 2000;41(suppl.9):8-13.
- Lopes-Cendes I, Guerreiro CAM, Costa ALC. Aspectos reprodutivo-endócrinos. In: Guerreiro CAM et al, (eds). Epilepsia, 3a.ed. São Paulo. Lemos Editorial, 2000:243-246.
- Sawhney H, Vasishhta K, Suri V, Khunnu B, Goel P, Sawhney IMS. Pregnancy with epilepsy - a retrospective analysis. Int J Gynaecol Obstet 1996;54:17-22.
- Tanganelli P, Regesta G. Epilepsy, pregnancy, and major birth anomalies: An italian prospective controlled study. Neurology 1992(suppl 5):89-93.
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- Vert P, Deblay MF. Hemorragic disorders in infants of epileptic mothers(IEM).In: Janz D, Dam M, Richens A, Bossi L, Helge H, Schmidt D.(eds). Epilepsy, pregnancy, and the child. Raven press, New York, 1982:387-388.
- Yerby MS. Risks of pregnancy in women with epilepsy. Epilepsia 1992;33(suppl.1):S23-27.

Alberto Costa e Carlos Guerreiro são docentes do Departamento de Neurologia, FCM Unicamp

Fonte: http://www.comciencia.br/reportagens/epilepsia/ep20.htm


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